Se Robert Zemeckis filmasse ‘De volta para o futuro’ no Brasil, a falta de água e os apagões seriam temas recorrentes da trama. A água é um recurso essencial para a vida de todos os seres vivos. No entanto, como boa parte dos recursos naturais, só ganha atenção junto à população e formuladores de políticas públicas quando o volume ofertado deixa de ser adequado, seja pelo excesso ou por falta. Neste ano de 2021, além dos problemas de abrangência global enfrentados devido à pandemia, já podemos retomar o ditado alertando que “desgraça pouca é bobagem”.
As chuvas foram muito escassas principalmente nas regiões agricultáveis do Sudeste, Sul e Centro-Oeste, mantendo-se abaixo da média em um período crítico para boa parte das culturas agrícolas, afetando negativamente a produção. Isto deverá restringir a geração de excedentes exportáveis, que têm sido importante fonte de recursos para amenizar os vários problemas econômicos acumulados no País desde o início da pandemia.
O impacto da escassez “conjuntural” (ou estrutural?) de água não se restringe à menor produção agrícola. Na verdade, os impactos esperados devem ser muito mais abrangentes por vários motivos. A escassez de produtos agroindustriais traz consigo riscos de desabastecimento e aumento de preços dos alimentos. Além disso, a dificuldade em gerar produtos exportáveis deve reduzir o fluxo de reservas internacionais, contribuindo para o baixo poder de compra de nossa moeda. A conjunção destes aspectos pode levar a um aumento generalizado de preços, ou seja à inflação – atualmente em 8,13% ao ano (IPCA), patamar que não era observado desde 2016 –, que somente se cura com remédios bastante amargos e conhecidos pelos que já conviveram com tal fenômeno em décadas passadas.
No curto prazo, a conta será mais uma vez paga pela população de uma forma regressiva, ou seja, pesará mais para quem tem menor renda. Aos problemas acima mencionados, soma-se o aumento na conta de luz, em um momento em que muitos estão trabalhando no esquema “home-office”, o que os força a assumir o custo relativo ao consumo de energia necessário para trabalhar. Resultado: quem ainda tem salário, ou seja, não está desempregado, terá maior dificuldade para fechar as contas ao final do mês, considerando o aumento nas despesas com consumo de eletricidade, água e alimentos. Um pacote quase que perfeito para um estouro de inflação, não fosse a perda de poder aquisitivo da população. Neste caso, o remédio amargo pode assumir também uma natureza preventiva.
Neste ano de 2021, portanto, à preocupação com os impactos da covid-19, vêm se agregando a outras preocupações com fenômenos que podem atingir grandes proporções, como aceleração da inflação, uma tendência ao aumento da desigualdade de renda, sem contar os já anunciados riscos de apagão, há pouco mais de 20 anos da última ocorrência deste fenômeno no País. Dessa trinca macabra, vamos focar neste último, para o qual cabe uma reflexão pela população e gestores públicos. Por ser um bem público, cabe ao governo regular o acesso à eletricidade, assegurando o uso múltiplo e sustentável em benefício das atuais e futuras gerações. Torna-se necessário avaliar quais as políticas públicas que estabeleceram metas para resolver ou pelo menos amenizar problemas desta natureza no nosso País? Quais os governos que apresentaram medidas importantes para assegurar o abastecimento de água e energia elétrica – para finalidades diferentes – e que de fato fizeram a diferença? O apagão é, de fato, um problema conjuntural? Ou será estrutural?
O primeiro apagão de grande abrangência ocorreu no final da tarde de quarta-feira, 18 de abril de 1984, quando um blecaute atingiu 12 milhões de pessoas em seis estados da região Centro-Sul do Brasil, estendendo-se pela noite. Foi o primeiro grande apagão nacional após a interligação da rede Sul-Sudeste e o maior do País até ser superado, já no ano seguinte, pelo blecaute de 1985, e por aí vai. O motivo no período foi que a dimensão da demanda não foi adequadamente antecipada, tornando necessário um racionamento em 2001 (há exatos vinte anos), para reduzir em 20% o consumo de energia elétrica do País, anunciado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.
Desde então, muita água não rolou. Continuamos reféns de chuvas para garantir que a economia não seja interrompida de um momento para outro, derrubando perspectivas de retomada da produção e empregos.
A atual gestão de recursos hídricos do Brasil tem base na Política Nacional de Recursos Hídricos, de 1997, a chamada Lei das Águas. Em 2019, 22 anos após a sua publicação, 233 comitês de bacias hidrográficas estavam em funcionamento no País, 240 planos de bacias já haviam sido desenvolvidos e R$ 3,36 bilhões foram arrecadados com a cobrança pelo uso dos recursos hídricos (ANA; 2021). A matriz energética aumentou o potencial de transmissão, passando de 75.000 MW em 2001 para 170.071 MW em 2020, sendo mais de 75% a partir de fontes renováveis (ANEEL; 2020).
O mais recente apagão foi em novembro de 2020, no Amapá, sendo que o período de racionamento foi de 22 dias.
A despeito, portanto, de todos os avanços com pesquisa e tecnologia, a economia brasileira está novamente sujeita a um risco de blecaute elevado. O Brasil é um dos poucos países em que o potencial de expansão na geração de eletricidade a partir de fontes alternativas, como de biomassa, fotovoltaica, eólica e de hidroelétricas, ainda pode ser considerado elevado. A potencial crise hídrica e elétrica tem sido, no entanto, um componente comum nas várias ocorrências de apagão no País, o que sugere a existência de um problema recorrente de omissão na gestão pública (e privada) dos recursos naturais, que não incorpora mudanças climáticas no planejamento.
Em termos gerais, a insegurança relacionada à disponibilidade da quantidade necessária de água deriva-se de três aspectos: a escassez física (agravada por padrões climáticos); administração pouco adequada (envolvendo os contextos regulatórios); e problemas de infraestrutura. As evidências levam a concluir que o avanço na geração e a diversificação de fontes, sem esquecer das usinas hidroelétricas, são necessários.
Existem argumentos de que o problema se deve à política ambiental e ao avanço da fronteira agrícola. No entanto, há muitas possibilidades para a geração de eletricidade “limpa” com o reaproveitamento de biomassa, como a palha da cana, a custos relativamente baixos tanto na produção como na distribuição. Também iniciativas de biodigestão de resíduos estão cada vez mais disponíveis, face aos avanços conquistados pela ciência, quando comparadas a alternativas como a energia eólica.
Segundo a Empresa de Pesquisa Energética, em 2020, o incremento das fontes eólica e solar na geração de energia elétrica e o avanço da oferta de biomassa da cana e biodiesel contribuíram para que a matriz energética brasileira se mantivesse em um patamar renovável muito superior ao observado no resto do mundo. Em 2020, a participação de renováveis na matriz elétrica brasileira atingiu 84,8% e na matriz energética geral, 48,4% (enquanto no resto do mundo esse número é de míseros 13,8% e nos países ricos, de 11%) [1].
Ainda assim, não estamos nada bem, e por falha de política pública. Por uma questão de falta de planejamento e incentivos, a Alemanha e a China hoje têm mais energia solar que o Brasil, apesar de terem muito menos dias ensolarados. Também os ventos por aqui são abundantes, contudo, as ‘outras renováveis’ correspondem por apenas 7,7% (biomassa da cana, 19,1%, hidráulica, 12,6%, lenha e carvão vegetal, 8,9%). E dentro dessas outras renováveis está a solar, com apenas 4,2%, a eólica, com 22,1% (biodiesel com 23,8% e a lixívia – biodigestão do chorume do lixo, com 43,1% [2]).
Além disso, é um atestado de ineficiência da administração pública permitir que em 10 anos continue havendo em torno de 50% de perdas nas centrais elétricas (47,7% em 2011 e 55,8% em 2020) e 27,6% [3] de perdas de transmissão e distribuição de eletricidade. Falta “luz” para o desenho de instrumentos de intervenção no domínio econômico voltados à eficiência, como mecanismos de precificação, estímulos à adoção de melhores tecnologias e o estabelecimento de unidades de produção próximas de onde há o consumo.
Só para dar um exemplo, cada brasileiro descarta 170 kg de matéria orgânica a cada ano[4], e, se houvesse biodigestão desse material localmente, o risco de apagão estaria bem remoto. Assim como o carro do filme ‘De volta para o futuro’ que passa a ser movido a lixo, a nossa política energética precisa de um bom melhoramento para começar a voar.