Economia
28-06-2021 | 10:10:00
Agronegócio brasileiro: a importância e complexidade do setor
Gabriel Costeira Machado *
O bom desempenho do setor está, a propósito, diretamente ligado às suas exportações. Para se entender tal assertiva, deve-se considerar os seguintes cenários: a alta dos preços internacionais das commodities, predominantes na pauta de exportações brasileiras, em função do aumento da demanda mundial por alimentos, e a forte desvalorização do Real frente ao dólar. Ambos os fatores fazem das exportações o “caminho dos tijolos amarelos” para a produção agropecuária, pois seus produtos estão mais valorizados e seus preços, em dólar, mais competitivos.
Combinado a isso, foram observadas produções recordes para a agricultura brasileira em 2020. As safras de algodão, soja e milho atingiram, respectivamente, 7,4 milhões de toneladas, 124,8 milhões de t e 102,6 milhões de t (crescimentos de 4,9%, 4,3% e 2,5%, respectivamente), resultado da combinação de aumento da área e de ganhos de produtividade. No caso da pecuária, apesar do crescimento mais modesto da produção, a alta dos preços foi a principal responsável pela expansão do faturamento das atividades, que está atrelada, por sua vez, ao forte aumento da demanda externa por carnes brasileiras. Os embarques de carne suína cresceram 39% em 2020 e os de proteína bovina, 12%. Dentre os parceiros comerciais do agronegócio brasileiro, a China predomina como o principal, sendo destino de 33,7% do total embarcado, de 73% da soja em grão, de 56% da carne suína e de 48% da proteína bovina.
Em publicação recente do Boletim Focus, o Banco Central do Brasil (BCB) estima manutenção da taxa de câmbio a R$ 5,30 ao fim deste ano, enquanto a economia brasileira deve crescer 4,36%. No campo, dados da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) indicam novos recordes nas produções de soja e de milho, cujas áreas podem avançar 4,2% e 7,1% na safra 2020/21, respectivamente. Para as carnes, espera-se manutenção dos elevados fluxos de exportações, se mantida a tendência já observada, conforme a Secex.
A despeito desses recordes, há de se levar em consideração que: a) o expressivo crescimento da agricultura se tratou de uma recuperação, haja vista a queda da renda real do segmento entre 2017 e 2019; b) o aumento dos preços não pôde ser absorvido por uma parcela de produtores que já havia negociado as suas safras; e, c) houve alta expressiva dos custos de produção, que espremem a margem dos produtores. Esta questão é mais prevalecente no caso do segmento primário da pecuária, em que se observou avanço significativo dos custos de produção relacionados à alimentação animal, em função das valorizações do milho e do farelo de soja.
Na outra ponta está o consumidor brasileiro, que tem se deparado, desde o ano passado, com alta relevante nos preços dos alimentos. Após um ano da declaração de “pandemia de covid-19” por parte da OMS, o IBGE divulgou, em abril deste ano, aumento acumulado dos preços dos alimentos de 13,9%, superior ao avanço do índice geral, de 6,1% – acima do limite máximo estabelecido pelo BCB. Dentre os itens que compõem o grupo de alimentação e bebidas, destacam-se os avanços do óleo de soja, do arroz, da batata e do leite UHT. De acordo com dados do Cepea, entre março de 2020 e 2021, houve alta acumulada importante de 47,6% do Índice de Preços ao Produtor de Grupos de Produtos Agropecuários (IPPA/CEPEA), destacando-se a do arroz em casca (72,8%), da soja em grãos (86,5%), do milho (59,4%), do boi gordo (54,4%), do frango (43,7%), do leite (34,8%), do suíno (20,3%), dos ovos (19,4%) e da batata (21,9%).
A alta dos preços dos alimentos pode ser atribuída, principalmente, à desvalorização da taxa de câmbio, ao aumento da demanda internacional pelas commodities e a mudanças no comportamento dos consumidores, devido ao contexto de isolamento social. Há de se levar em conta, ainda, o efeito do auxílio emergencial temporário sobre a demanda das famílias e, portanto, a elevação dos preços domésticos. Esse cenário se torna particularmente delicado quando considerada a parcela da população mais pobre e, consequentemente, mais afetada pela crise econômica intensificada pela pandemia, que sofreu a perda de emprego e/ou redução da renda. Em 2020, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de desocupação atingiu recorde da série histórica (iniciada em 2012) de 13,5%, somando 13,4 milhões de pessoas.
Não obstante, este contexto tem trazido luz ao debate sobre o aumento do número de famílias brasileiras vulneráveis à fome, uma vez que a) o processo inflacionário corrói o poder de compra da população, o que se torna problemático entre os mais pobres; b) a renda é um importante fator para assegurar, ou não, a segurança alimentar e nutricional das famílias. Por exemplo, a última divulgação da Pesquisa de Orçamento Familiar 2017-2018, do IBGE, mostrou um processo de reversão de conquistas observadas até 2013, tendo lugar uma redução do número de domicílios em situação de segurança alimentar e nutricional e importante aumento de domicílios de insegurança alimentar moderada ou grave – baseando-se na Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia). Corroborando, estudo recente mostrou que, durante a pandemia, mais da metade dos domicílios brasileiros consultados enfrentaram situação de insegurança alimentar.
Esses contrastes, portanto, evidenciam a importância e a complexidade do setor; chamando a atenção para a necessidade de conciliar os interesses dos produtores, de modo a garantir a manutenção do desempenho do agronegócio, assumindo o seu protagonismo na contribuição para a economia brasileira, em termos de geração de renda e emprego; bem como o de se levar a cabo políticas públicas que capacitem as famílias brasileiras com renda suficiente para garantir segurança alimentar, calibrada conforme a evolução do custo de vida e do grau de desocupação e/ou subemprego. Em termos de programas direcionados a ações mais diretas sobre a segurança alimentar, algumas alternativas têm sido propostas e outras já são implementadas.
Um aspecto que tem sido discutido é o de formação de estoques públicos de reserva, que precisaria ser compatibilizado, evidentemente, com a sustentabilidade econômica da produção. O histórico, porém, do mau desempenho do setor público nesse tipo de política – que levou à completa reformulação dos programas de comercialização em que se envolvia no passado – não recomenda sua reintrodução. Tal atividade demanda agilidade na tomada de decisões, na disponibilização de recursos, além de eficiência logística. Tal agilidade não é uma das características do setor público, particularmente o brasileiro.
Por outro lado, já existem instrumentos de política agrícola e de acesso à alimentação adequada, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003, voltado à aquisição da produção da agricultura familiar – neste caso, de produtores rurais enquadrados no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Além da aquisição dos produtos e da garantia de renda aos produtores, o PAA se articula a outros programas, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), instituído em 2009, de modo a reforçar as políticas de segurança alimentar e nutricional, procurando levar refeições de qualidade para crianças e jovens da rede pública de ensino básico, adquiridos junto à agricultura familiar – o que foi fortemente afetado durante a pandemia. Contudo, desde 2013, os recursos financeiros destinados ao PAA têm decrescido. Em 2020[1], foram destinados, segundo Lei de Orçamento Anual, R$ 168,2 milhões ao Programa, dos quais, apenas R$ 27,16 mi foram executados. Para este ano, foi proposto orçamento de R$ 101,7 mi. A despeito da severa crise econômica e sanitária sem precedentes enfrentada pelo País, todo e qualquer governante deve saber que um obstáculo primário para sobrepujar a miséria e alcançar o desenvolvimento é a fome.
[1] Neste ano, houve aporte adicional de recursos de R$ 814,3 milhões estabelecidos no Decreto Legislativo nº 6 de 20 de março de 2020, que reconhece o estado de calamidade pública devido à crise de covid-19.
(*) Gabriel Costeira Machado é pesquisador da área de macroeconomia do Cepea